terça-feira, 20 de maio de 2014

O AMANTE

Eu não sou de nenhum lugar
Eu sou da farsa, sou do ar
Do começo, do tropeço
minha raiz é flutuante
minha raiz é flutuante
minha raiz é flutuante

Não sou eu quem vai carregar
O peso leve de um laço
O castigo de um abraço
Eu sou o amante
Eu sou o amante
Eu sou o amante

Desde logo te aviso:
Não sou como Lancelote,
Que num canto se demora
Eu sou homem que chegou e foi embora
Eu sou homem que chegou e foi embora

Porque eu só vim pra alertar
Fugir é o mesmo que ficar
no mesmo canto
Não se negue tanto
Não se negue tanto
Não se negue tanto
Não se negue tanto

(...)

Era uma vez uma praia deserta. Eu nunca consegui ir lá, porque quando chegava ela já não era.
Jadiel Lima, 23h38, 20 de maio, 2014

terça-feira, 13 de maio de 2014

O olfato e o afeto

Se você é uma pessoa comum que pega ônibus diariamente para ir ao trabalho ou aos estudos, com certeza naquele horário de pico já se viu na desconfortável situação de estar ao lado de alguém com um odor característico forte na região das axilas. Vulgo sovaqueira. Começo de noite, quinta-feira, lotação básica. De repente você nota que tem algo errado no ar. Morrendo de medo de ser em ti mesmo, dá uma fungada discreta no canto do braço. Não é. É no cara ao lado, que está como você, em pé, se apoiando nos bancos. Ao menos isso, pois até aí os braços dele não estão muito abertos. Mas aí ele inventa de erguer as mãos e se segurar naquele corrimão na parte de cima do coletivo, para o desespero alheio. Você pensa em avisá-lo, xingá-lo, atirar-lhe desinfetante. Porém tudo isso pareceria mais escroto ou constrangedor que a própria realidade daquela atmosfera, então sua única ação é a de se proteger, tentar não encostar nele e seguir a viagem.

Ufa! Finalmente você desce do ônibus, volta a respirar o ar fresco ainda não muito agradável da cidade e se indaga porque uma pessoa dessas não se lava, usa desodorante. É a pergunta mais óbvia que nos vem à mente. Particularmente, também penso nesta: E quando não existiam desodorantes ou perfumes?
Imagina os nossos ancestrais, quando o ser humano era apenas sapiens ou nem isso. O quão mais forte era a nossa nhaca? Talvez o cheiro fosse usado como forma de seleção natural. Somente os indivíduos que não sufocassem o parceiro conseguiriam acasalar e procriar saudavelmente.

Brincadeira. Na verdade, acho que alguns dos odores do nosso corpo hoje são bem piores que no passado, tanto por uma questão ecológica — já que cada vez mais somos atacados pelos hormônios e produtos químicos na nossa comida ou produtos de higiene, pela poluição e pelo estresse da vida moderna — quanto por uma questão de costume.

Diferentemente dos antepassados selvagens, que provavelmente utilizavam mais esclarecidamente o olfato para a identificação territorial, sexual, etc, nós hoje negamos quase completamente o nosso cheiro. Desde que nascemos, passamos pelo processo de acobertamento das nossas essências naturais através do sabonete, do shampoo, do condicionador, dos cremes para pentear, pastas de dente, talcos, dos perfumes e colônias.

Mas as coisas no universo funcionam de forma compensatória. Ou seja, no que essa nossa artificialidade nega, também afirma muita coisa. Por exemplo, você se lembra quando o cheiro do seu corpo começou a ficar mais forte, lá pelos onze anos, já perto da puberdade e você foi coagido a usar desodorante? Suas axilas, assim como a de seus colegas tinham, um aroma meio enjoento, mas não era tão desagradável, certo? Convenhamos, era até um cheirinho bom, principalmente o dos ou das colegas do sexo oposto (exceto o do Amoeba, que era como a galera da minha sala no Fundamental chamava um menino que tinha manchas esverdeadas abaixo do braço, na farda). Pois é, não negamos de todo. Ou você também não já cheirou aquela cerinha do ouvido? Ou não já levou o dedo às narinas após a coçadinha no rego? E ninguém se intoxica ou vomita depois disso. Aliás... Nós gostamos!

Não negamos de todo pois nossos cheiros são o que guardamos talvez de mais instintivo. Sim, o olfato é o nosso sentido mais profundo. É através dele que acessamos as memórias mais abstratas e incompreensíveis. Você guarda lembranças de aromas que sentiu de determinadas pessoas, comidas ou objetos em épocas específicas da infância. Quando você detecta algo parecido, isso imediatamente te remete àquela memória, mas você nunca lembra exatamente como era. Porque não é imagético, não é claro ou racional.

Você está caminhando na rua e não nota estar com fome até sentir o cheiro de almoço de alguma casa ou restaurante. Não surte o mesmo efeito se você apenas olhar o prato de alguém.

O cheiro também nos segrega socialmente. Os perfumes mais intensos e de melhor qualidade são mais caros. Pode parece só um detalhe, mas inconscientemente ou não as pessoas recebem melhor quem se veste em um aroma agradável e autêntico. Talvez isso um perfume francês conte mais que uma roupa de grife. Locura, né? O mercado sabe e age dentro disso.

Os olores diferenciam também situações sociais. Para sair à noite é necessário ir “para casa tirar o cheiro de sol”, como dizia minha mãe, e se perfumar todo. Há quem saiba jogar com isso e discernir perfumes para diferentes ocasiões. Ou quem também saiba que cada perfume toca o nariz de alguém diferente e se pinte de gostos específicos.

E há cheiros que te tocam, querendo ou não, e com os quais você vai se harmonizando ao longo da vida. Reconheces aquele macio, de horta, de areia fofa úmida, que é o da sua da mãe; também aquele leve, casquento e antigo de livros, que é o do seu pai; aquele outro, perturbador, de toalha molhada dentro de casa depois da chuva, característico do amado ou da amada. Aromas que você coleta na convicência através de um belíssimo gesto: o cheiro! Fui criado num contexto onde o ato de cheirar é cumprimento, demonstração de carinho. É como se o gesto comunicasse um “sentir o seu cheiro me faz bem” ou no mínimo um “eu não me importo”. Este último é ainda mais maravilhoso.

_Não, o meu cabelo está fedendo, eu passei o dia correndo no meio do mundo... — a pessoa reclama e você a cheira mesmo assim, porque realmente não se importa e isso não anula a outra sentença de que sentir o outro lhe faz bem.

Mais que tipificar estéticas, o olfato é uma linguagem que nos permite compartilhar afetos e de uma maneira muito profunda. Às vezes é importante saber se comunicar melhor através dele. O que custa agradar de vez em quando? No entanto, nada mais gratificante que reconhecer e aceitar os nossos aromas naturais, nossas identidades, a bagagem subjetiva que carregamos através deles. Abdicar das superficialidades artificiais olfativas do mundo contemporâneo e nos perfumar com a nossa naturalidade, nossa ancestralidade.

Boa sorte, cara do ônibus.



sábado, 3 de maio de 2014

GULA

A pessoa engoliu o mundo, pensando que o comeria sozinha. Mas desde a saliva até o estômago e depois pelo intestino, as enzimas, as bactérias e outros seres do organismo foram digerindo, absorvendo, enfim, repartindo o alimento dentro da pessoa.

Até o mundo provou de si próprio, involuindo como se partisse pra outra dimensão. Aliás! O que se comeu dele foram apenas seus restos que ele deixou para trás, e o seu mistério. Safado...

Mas comeu-se dele. Comeu do mundo o que fosse dele, quem fosse do mundo, tudo o que fosse um — sabendo ou não — a pessoa também era mundo.