sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Querida menina branca

Querida menina branca,

O racismo no Brasil é autonegação.

Eu estudava em um dos dois maiores colégios particulares de Maranguape. Era só pra quem conseguia bolsa com o diretor ou quem realmente tinha no mínimo 300 reais por mês pra colocar a cria lá dentro. Então a farda branca, vinho e dourado dava um ar arrogante mesmo a quem era filho de pobre, como eu.

Estava entrando para o ensino médio quando o colégio firmou parceria com o Lourenço Brito, que ofertava apostilas e algumas palestras de preparação para o Enem. Tinha também o esquema de fazer provas simuladas no próprio Farias Filho. Lembro da primeira vez que minha turma foi fazer simulado. Interessante observar o choque com as novas referências de poder.

Os meninos já não eram tão bichões do fundão, nem tão playboys quanto os playboys do Ari de Salho. Aquilo sim era tênis de marca! Pra disfarçar, comentavam, com deboche, das meninas, dentre as quais a mais patricinha invejava os cosméticos ou a roupa engomada das meninas do particular de Fortaleza. E nem os 6 primeiros de nossas duas classes de terceiro ano eram tão "inteligentes" quanto os nerds leite-com-pêra de lá.

É péssima a postura de superioridade dos grandes colégios fortalezenses como um todo, incluindo os alunos ensinados a caminhar equilibrando o nariz. No entanto, me tocou mais nós mesmos termos nos colocado naquele local de inferioridade. Não éramos páreos para aquele adversário, no jogo do consumo.

Da mesma forma, quando essa galera bacana da faculdade, movida a Gato-Preto, Mambembe e fast-food vai pra algum país europeu, acho que o choque é parecido. Ou quando o maluco de estrada daqui mais liberto se encontra com mochileiros do sul ou da Argentina. Ou quando quem se acha branco se vê perto de um alemão, irlandês, canadense…

Olhe só: é que nós, pelo menos os nordestinos, mesmo quem tenha descendência holandesa, é raro não ter algum parente tapeba, potiguara, cariri, pitaguari, tapuia ou banto, umbuntu esquecido lá atrás por negação da família ou do pai bastardo. Não somos brancos. Somos outra coisa, inventada há alguns séculos.

Somos outra coisa não só fisicamente (no entanto, deixe-me lembrar do lindo formato arredondado do teu rosto e do teu forte pescoço curto). Nosso jeito de falar, nossas línguas e variações, nosso andado, a nossa história, nossas estórias nossa comida, nossa relação com a água, o formato de nossas casas e ruas, a maneira como fazemos nossa arte. Somos muita coisa, porque não somos uma coisa só. Mas este lugar, esta condição torta da qual descendemos, nos faz sermos algo em comum.

Você se considera branca pelo teu cabelo liso, por causa da tua pele e da cor dos teus olhos. Porém irreleva toda uma descendência sígnica e genética dos povos daqui e da África e, além disso, do resultado desta confusa transmutação.

O engraçado é que, muito possivelmente, parentes originários da família europeia mais reles negaria uma filha mestiça, nascida numa colônia. Não estou dizendo que a maneira como eu, de pele escura, lido com o racismo não seja diferente da sua. É incomparável. Estou dizendo, no entanto, que muito desta opressão se deve a essa autonegação.

Maranguape é uma cidade com baixa autoestima. Metropolitana com cara de interior, total, mas parece não achar bacana se reconhecer dessa forma.

Eu achava o máximo Maranguape não ter shopping, não ter engarrafamento, não ter grandes estabelecimentos nem prédios altos. E ter árvores. Pouco a pouco vai mudando. Deixando de reconhecer o que parece falha, mas é potência e lindeza. Se colocando dentro de um jogo que parece poder, mas é fraqueza.

Abraços!